Alberto de Oliveira: Fontes Fluminenses da Memória
Camillo Cavalcanti (UFRJ/CAPES/UFF)
Alberto de Oliveira (1857-1937) nos deixou uma vasta obra poética em quatro séries. Suas Poesias (1900/1906/1913/1927) foram reduzidas a uma breve e fátua seleta, encarregada de levantar elementos que confirmem o lugar de líder do parnasianismo no Brasil — e a crítica nacional nela só enxerga vasos e leques numa imensidão de plantas e bichos da natureza fluminense, paisagem fecunda para um amor intenso que anima quase meio século de lirismo.
Ainda que jamais tenha renunciado ao culto da forma, i.e., a arte-pela-arte consagrada no famoso periódico “Le Parnasse Contemporain”, seus livros Sonetos e Poemas (1886) e Versos e Rimas (1894) têm sido tratados, desde as antológicas e lúcidas análises de um Araripe Jr. (in: OLIVEIRA, 1978: I, 217-220), Nestor Vítor (1973: I, 357-374) ou José Veríssimo (1977: II, 153-161), como transição de uma poética que se liberta dos esquemas de escola para celebrar a natureza e o amor — ambos, com fortes traços memorialísticos.
A ligação entre vida e obra é uma questão de difícil resolução nos estudos literários — por isso os temas memorialísticos serem pouco estudados. Se a obra de arte não é uma clonagem da vida de seu autor, por outro lado, como entender o aparecimento de imagens que são re-presentações e ou re-criações (grafia que intenta aproveitar a mediação entre os sentidos com e sem o prefixo re-) de pessoas, lugares e coisas experimentados pelo autor? Torna-se necessário, portanto, aprofundar os estudos sobre o conceito de verossimilhança: até que ponto os elementos que compõem uma certa obra de arte se emancipam do real, esfera de sua origem. Ver-se-á, na análise dos poemas, que o material memorialístico na poesia (tomando-se como exemplo a obra de Alberto de Oliveira) se transubstancia de fontes biográficas para imagens estéticas. Embora haja traços comuns entre ambas, percebe-se a diferença graças à imaginação criativa do artista.
Assim, esse estudo se propõe a estudar tais imagens (emancipadas da biografia do autor) de forma a munir o debate teórico sobre a questão. Nas Poesias, esses temas remetem ao itinerário do poeta pelo Estado do Rio de Janeiro. Nascido no Palmital de Saquarema, conheceu muitas cidades fluminenses na sua brilhante carreira que o ascendeu das classes pobres para a elite intelectual. Seu pai, mestre-de-obras, nasceu em Rio Bonito; casou e fixou residência em Rio-Mole, nas cercanias de seu nascedouro — tudo isto era município de Saquarema. Somente através da história do pai (porque Alberto de Oliveira nasceu no Palmital, pouco antes da freguesia da Paróquia N. S. de Nazaré de Saquarema) é que se pode entender por que a família se estabelece em Itaboraí antes de conquistar Niterói. Embora seu único insigne biógrafo (SERPA, 1957: 12) observe “alguns bens de fortuna” e “vários escravos”, Alberto de Oliveira (1978: III, 221) declara vir “de pais remediados de haveres”. A versão do poeta é mais coerente com a moradia da Praia de São Domingos: um barracão, segundo declaração de Antônio Parreiras (apud SERPA, opus cit.: 35-36), ao qual primeiro chegou José, irmão mais velho do poeta, em 1877, e, meses depois, o próprio Antônio Mariano, nosso Alberto de Oliveira.
Sobre a vivência nos sítios rurais, a obra de Alberto de Oliveira nos presenteia com várias páginas memorialísticas. Parece que a explicação mais uma vez está na diferenciação entre vida e obra, pois embora o poeta tenha se convertido em homem urbano, atuante em jornais da capital, o EU-lírico pouco conhece a cidade, preferindo a vida tranqüila e pacata do campo, em harmonia com a natureza: daí a re-criação das lembranças em imagens poéticas. Pode-se tomar “Pedra Açu” como exemplo:
Subi da Pedra Açu ao cimo, e de lá pude
Ver toda a Natureza.
Quanta beleza!
Desde Itaboraí com o seu pequeno outeiro
Vi até longe, ao mar, essa planície rude,
Onde nos capinzais
Voa o bico-rateiro
E a garça espalma e agita as asas triunfais.
Vi fazendas com os seus torreões de pedra erguidos,
E casas de vivenda;
Cada fazenda
As estradas e o campo atroando com os gemidos
De seus carros de bois carregados de canas.
Sob um leve vapor,
Senzalas e choupanas
Vi... e as roças de milho, e os laranjais em flor.
E as cercas onde pia o anu-do-brejo, e a mata
Onde a inambu se espanta,
Se esvoaça e canta,
Vi. E os olhos baixando à casa que Elza habita,
Vi a pedra da grota, ouvi mesmo a cascata
Que há naquele lugar,
E a música infinita
Das águas e do vento e das abelhas no ar.
Vi tudo, tudo ouvi. E que desejo imenso
De tudo vendo, vê-la
Também a ela,
Lá embaixo na varanda a me acenar com o lenço!
E tão só para isso, a esbaforir-me de ânsia,
Eu ao cimo subi
Da Açu, de onde à distância
Tanta cousa formosa extasiado vi!
(OLIVEIRA, 1978: II, 220-221)
Como se lê, Itaboraí é re-criada a partir da lembrança, num processo que transfere determinados traços memorialísticos em imagens poéticas. Através delas, dá-se ênfase à exuberância da natureza local, também re-presentada. Os prazeres de ver a amada são amalgamados à sorte de se apreciar tanta beleza da paisagem rural, contemplada do alto da Pedra. O lugar poético goza de uma riqueza extraordinária, pela diversidade de acidentes geográficos e engenharia humana: pequeno outeiro, planície rude, capinzais, fazendas, casas de vivenda, a mata, a pedra, a cascata, a casa de Elza.
A minúcia na descrição inventaria os diversos pontos acima elencados, que são observados em separado, dando destaque ao que mais participa da carga emotiva. Por isso, a preocupação do EU-lírico está direcionada para transmitir essas notas de exotismo nem fantástico, nem artificial, mas propositalmente inserto na paisagem fluminense. Não se trata de uma cor local exótica, mas um modo exótico de olhar.
Assim, esse olhar consiste, em alguns momentos, numa lente de aumento; em outros, numa visão panorâmica. Na primeira e na segunda estrofes, o extenso panorama da paisagem cede lugar gradativamente ao olhar minucioso e ampliado de alguns logradouros cuja multiplicidade/complexidade dos elementos constitutivos justifica um foco ampliado: é o caso das fazendas e das casas de vivenda. Lá, os carros de boi atravessando sonoramente as estradas e o campado, por entre pedreiras, dão o mesmo acorde ruidoso que conforma a natureza ao aproveitamento latifundiário do inventário natural: os canaviais, as roças de milho e os laranjais são interferências do trabalho humano, ainda que não destrutivo como o processo urbano. Nesse sentido, são as senzalas e choupanas que testificam a pobreza dos trabalhadores rurais.
Ultrapassando as cercas dessas fazendas, a segunda seara múltipla/complexa de elementos vários corresponde à natureza em seu estado mais selvagem, pois livre das transformações mais profundas que o homem outorga quando, por exemplo, organiza uma fazenda.
Não é difícil perceber que essa imagem parece um quadro: naquilo que este traz de testemunho do que já passou — fixo, imutável. Tal impressão é acentuada pela forma verbal “vi”, em declinação pretérita. Trata-se, portanto, de uma articulação memorialística. Sondando a teoria da memória, Bergson propõe o conceito de lembrança-imagem para designar a “materialização da lembrança” — “que de virtual passa ao estado atual” —, deflagrando-se “no momento em que a lembrança é invocada pelo dado presente”. Nesse sentido, a lembrança-imagem é devedora da lembrança pura, pois esta se imiscui ao virtual, ponto de partida para o estado atual da lembrança-imagem. Somente com a passagem do virtual (onde está a lembrança pura) para o atual é que se dá a lembrança-imagem.
O sucesso de Alberto de Oliveira nos jornais e nas Meridionais (1884) fez com que o Governador do Estado (Presidente de Província), José Tomás da Porciúncula, o convocasse para o cargo de Diretor de Instrução do Estado do Rio de Janeiro, equivalente ao atual Secretário de Educação.
Devido às revoluções republicanas, a Capital do Estado foi transferida para Petrópolis — cidade em que o poeta permaneceu exercendo o cargo público, de 1892 a 1897. Por isto, Petrópolis é, assim como Itaboraí, re-criada em poemas como “Volubis”, “Alvorada” e “Palmeira da Serra” do Livro de Ema (1892-1897), período em que o autor esteve na cidade serrana. Porém, sob o crivo memorialístico, ela só aparece em Terra Nartal (1900-1901):
SAUDADE DE PETRÓPOLIS
É quando aqui, como em região maldita,
É fogo este ar, e o sol candente frágua,
Que a saudade de vós, tensa e infinita,
Cimo dos Órgãos, me enche os olhos d’água.
Choro por vós, serras de anil, onde a alma
Livre expandi e o coração de poeta,
Afastando-o daqui da intensa calma
E poeira vil desta cidade infecta.
Choro por vós, árvores seculares,
Que às trepadeiras suspendendo o véu,
Ides, os braços a alongar aos ares,
Meneando as grimpas, dialogar com o céu.
Plúmbeos penhascos sobrecarregados
De limo e avencas, barrocais floridos,
Estradas mortas, brenhas e valados,
Do azul na extrema capoeirões perdidos,
Choro por vós! Vendo-os, eu dizia:
— “Da visão vossa vinde encher-me o olhar!
Que alevantados surtos de poesia
Eu aqui sinto com vos contemplar!”
Choro... Não por teu luxo e pompas fátuas,
Bela cidade, cortesã da serra,
Não por teus parques e jardins e estátuas,
Pelos palácios que teu seio encerra;
Choro por vós, céus grandes e profundos,
Onde cem noites me travei, perdido
A olhar na marcha dos acesos mundos,
Arca por arca com o Desconhecido.
Choro por vós, nevoeiros das montanhas,
Neblina esparsa na manhã que ri,
Frígidas águas em que ao sol te banhas,
Grotão ruidoso do Itamarati!
Por vós... Não por teus bailes suntuosos,
Pelo esplendor das opulentas salas,
Cidade cheia no verão de gozos,
De poeira e luzes, de miséria e galas.
Por vós, luares de mármore, serenos,
Noites sem-par de penetrante frio,
Que Junho assopra e assopra Julho, a plenos
Pulmões, a face a arrepiado rio;
Por vós, camélias brancas, e encarnadas,
Dálias, por vós, roxas ou de outra cor,
Azáleas mil e orquídeas variegadas,
Plantas a rir, perpetuamente em flor;
Céu azul! claro sol! virente serra!
Por vós, que amei e em minha dor memoro;
Ó pedaço melhor de minha Terra!
Por vós, por vós... por nada mais eu choro!
(OLIVEIRA, 1978: II, 224-225)
Ao se evocar o que já passou, o passado vive no presente, i.e., traz para o momento atual parte de nossa experiência de vida. No entanto, a forma como se dá essa passagem, quer dizer, essa lembrança, não é uma reprodução exata do acontecido, mas uma outra maneira de olhar para os fatos sucedidos e os ter na medida em que a subjetividade os reformula no próprio processo de memorar. Em outras palavras, a memória modifica o fato acontecido. Como diz Bergson:
O que chamo meu presente é minha atitude em face do futuro imediato, é minha ação iminente. Meu presente é portanto efetivamente sensório-motor. De meu passado, apenas torna-se imagem, e portanto sensação ao menos nascente, o que é capaz de colaborar com essa ação, de inserir-se nessa atitude, em uma palavra, de tornar-se útil; mas, tão logo se transforma em imagem, o passado deixa o estado de lembrança pura e se confunde com uma certa parte de meu presente. A lembrança atualizada em imagem difere assim profundamente dessa lembrança pura. (BERGSON, 1999:164)
Portanto, o memorialismo poético é uma transubstanciação em terceiro grau, já que: a) o material memorialístico já parte de uma transubstanciação do real para alcançar, através de fragmentos de memória, uma nova imagem-tempo que inter-relaciona a lembrança pura (passado) e percepções da consciência (presente); b) arte já é, nas palavras de Deleuze, “uma verdadeira transmutação da matéria” (2003: 45) porque “os signos da arte [em oposição aos signos mundanos, sensíveis e amorosos] são os únicos imateriais” (idem, p. 37) e por isso “a arte está para além da memória e recorre ao pensamento puro como faculdade das essências” (idem, p. 44). Enfim, a arte que trabalha com memorialismo é duplamente transfiguradora do real, re-criando o eixo mundano num segundo grau da memória e mais uma vez num terceiro, próprio da arte memorialística.
A cidade transubstanciada no poema é exaltada pelos elementos naturais, ao passo que os aspectos urbanos aparecem em sentenças negativas, pois significam muito menos do que a paisagem silvestre, porque se refere à “região maldita” da “cidade infecta”, longe que está do “Cimo dos Órgãos” (alusão à serra do Norte Fluminense).
A solenidade, o tom laudatório e as apóstrofes em torno da cidade serrana colaboram para que o poema tome emprestadas algumas características da ode (tipo de lírica destinada à exaltação), se se levar em conta o que diz Angélica Soares (2003: 35) sobre esta forma lírica fixa: “modernamente ela conserva apenas o estilo solene e grave, próximo da poesia épica”.
A pesquisa de imagens na obra de Alberto de Oliveira indica vários lugares que serviram de inspiração poética. Dentre eles, não obstante, somente dois temas regionais aparecem sob o domínio da memória: a) Saquarema e todo o circuito entre Rio Bonito e a Paróquia N.S. de Nazaré (por vezes até mesmo Cabo Frio), abrangendo, pela proximidade, os temas de Itaboraí; b) Petrópolis e adjacências serranas. Por contraste, diferenciam-se outras duas partes não propriamente memorialísticas, mas igualmente dedicadas a logradouros fluminenses: a) Niterói e todo o circuito urbano das capitais, inclusive Rio de Janeiro; b) logradouros de pouca presença na obra, como Agulhas Negras na Serra da Mantiqueira, sobre a qual a notícia biográfica mais corrente não contempla, mas o poema “Nuvem”, pertencente a Flores da Serra (1901-1902), dá testemunho.
Atendo-se apenas aos temas memorialísticos — ligados a regiões praieras ou serranas —, a reiteração de imagens lhes dá relevo porque, ao longo das quatro séries de poesia, assim que a memória encontra espaço no território íntimo, os lugares reaparecem diversas vezes. Por exemplo, a região praieira (Saquarema e adjacências) será tema de vários poemas de cunho memorialístico, como “Praia Longínqua” de Alma livre, (1898-1901), “O Último Olhar” de Versos de saudade (1903), “Canto do Semeador” e “A Cigarra da Chácara”, ambos de Sol de verão (1904).
Algumas imagens logram reiterações constantes ao longo da obra: uma delas trata da “árvore” como imagem da vida, cuja freqüência na poesia de Alberto de Oliveira convidou Olavo Bilac a citar o poema “A Árvore”, em sua conferência proferida em 28 de abril de 1917, em homenagem “A Alberto de Oliveira”, o mestre parnasiano, compilada nas Últimas conferências e discursos (1927).
Já entre a Segunda e Terceira Série de Poesias, o julgamento crítico mais corrente sobre o poeta — a impassibilidade — não encontra, de maneira alguma, espaço nestes versos tão sentimentais, de um sujeito apaixonado pela terra em que vive. É desse modo que se pode falar de nacionalismo na poesia de Alberto de Oliveira, pois, ainda que não objetive ao levantamento de topônimos e outros aspectos da cor local, a fruição do espaço regozija o sujeito; e no caso da poesia de Oliveira, mais especificamente no eixo memorialístico, o universo poético não é apatriótico. Não se trata evidentemente de uma recusa da Pátria Superior (pensada pelos parnasianos como retomada das reflexões de Novalis), mas sim de uma superposição entre o nacional e o superior, na construção dessa utopia naturalesca.
Como se vê, há um entrelaçamento das fontes memorialísticas com o temário natural — isto porque, na obra de nosso poeta fluminense, a lembrança convoca todo um espaço rural ligado à infância. Mas este material lembrado não surge sem estímulos que o sujeito (no caso da poesia, um sujeito lírico) recolhe da percepção consciente do momento atual (presente). Nas palavras de Bergson:
Na verdade não há percepção que não esteja impregnada de lembranças. Aos dados imediatos e presentes de nossos sentidos misturamos milhares de detalhes de nossa experiência passada. Na maioria das vezes, estas lembranças deslocam nossas percepções reais, das quais não retemos então mais que algumas indicações, simples “signos” destinados a nos trazerem à memória antigas imagens. (BERGON, 1999: 30)
Portanto, o passado vem ao presente pelo processo de memorização, como que convidado pelas percepções atuais. Na poesia de Alberto de Oliveira, tal processo de lembrança — articulado nos foros íntimos do sujeito lírico — é aguçado pelo que há de semelhante nas diversas lembranças: as paisagens naturais, que, vistas em sua diversidade, traçam um itinerário poético de re-presentações da geografia e do nicho ecológico do Estado do Rio de Janeiro. No entanto, como já dito, essa diversidade de recantos fluminenses encontra uma considerável interseção com todas as imagens poéticas por serem estas, re-criações da fauna e da flora típicas da Mata Atlântica, nas pequenas variações — as mesmas que determinam a diversidade — das Serras (Mantiqueira ou dos Órgãos) ou do Litoral (Saquarema, Maricá, Niterói), pois essas regiões guardam tanto a sua especificidade que as distinguem das outras vizinhas quanto a semelhança de uma vegetação mais ou menos comum do Estado do Rio, se se pensar um referencial como a Mata Atlântica. Com certeza, este é um dos motivos da insistência dos temas da natureza na obra de Alberto de Oliveira.
“Plenilúnio de Maio” é exemplo de re-criação poética das paisagens saquaremenses, ou seja, da localidade praieira, do qual se percebe a plasticidade característica da poética de Alberto de Oliveira, logo na primeira das duas partes do poema:
Este luar que se levanta
D’além, das bandas do mar,
E tanta poesia, tanta
Vem com as asas a espalhar,
Dá-me não sei que saudade!
Vou longe com o pensamento,
Lá onde da mocidade
Soltei as rosas ao vento.
Em noite assim — por céu frio
Brilhava este mesmo luar!
Numa barca escura um rio
Desci com alguém a cantar.
Lembram-me os ramos pendidos
Que sobre a água se enlaçavam,
E os abraços repetidos
Que os braços dela me davam.
Lembram-me os cipós com os elos
Floridos, trançados no ar,
E os seus compridos cabelos
Banhados de orvalho e luar.
Lembram-me os dormentes lumes
De seus olhos, e suspensa
A dança dos vagalumes
No escuro da mata imensa.
(OLIVEIRA, 1978: II, 385-386)
A anáfora que inicia as três últimas estrofes ressalta o caráter memorialístico do poema: “lembram-me”. Observe-se que a escolha desta declinação verbal (em que o fato memorado conjuga o verbo enquanto o sujeito que rememora aparece como objeto através do clítico) dá mais relevo ao que se é lembrado, nesta tendência à personificação da imagem, como se ela pudesse executar ações humanas (das quais um exemplo é a memória). Trata-se, por isto mesmo, de uma figura poética de muita densidade e riqueza, pois ainda também assinala uma forte fusão anímica entre o sujeito lírico e o entorno (crivado pela memória).
A presença da mulher, como já se assinalou muitas vezes na bibliografia crítica sobre o poeta, é fundamento do erotismo que se percebe de sua poesia — e lá está a mulher, passeando de barco com o sujeito. As imagens da mulher e da paisagem se interpenetram num amálgama em que os braços da amada e os cipós pendidos ganham um paralelo quando se destaca o erotismo que ambos provocam em seus pares: a amada (metonimizada pelos braços), abraçando calorosamente o sujeito lírico; a floresta (metonimizada pelos cipós), penetrando suavemente o mar — tudo isto numa forte tendência à indiferenciação de ambas as imagens (da mulher e da paisagem).
O poema segue, não obstante, descrevendo mais a natureza circundante, na segunda parte, sugerindo uma comunhão total entre os elementos, que na linguagem erótica significa copulação. A passagem da primeira para a segunda parte do poema sugere um intervalo, uma pausa, um repouso — como depois de um ato erótico. Bem se sabe a importância das fissuras da duração (conceito memorialístico) depois que Bachelard as explicou:
Assim, num plano particular, no nível de uma função particular, sem nenhuma dúvida é a dialética e não a continuidade o esquema fundamental. Como diz Rivers, “a alternância entre duas reações opostas torna indispensável a inibição de uma delas. / Em outras palavras, o jogo contraditório das funções é uma necessidade funcional. Uma filosofia do repouso deve reconhecer essas dualidades. Deve manter seu equilíbrio e seu ritmo. Uma atividade particular deve comportar lacunas bem colocadas e encontrar uma contradição de algum modo homogênea a ela. O repouso, que pode aceitar atividades contrárias, deve recusar atividades heteróclitas. (BACHELARD, 1988: 34)
Mas o filósofo não tem necessidade de descer a [...] regiões provisoriamente proibidas para aceitar ao mesmo tempo o pluralismo e o descontínuo temporais. A dificuldade de se manter numa meditação particular lhe mostra muito bem claramente um tempo feito de acidentes, bem mais perto das inconseqüências quânticas que das coerências racionais ou das consistências reais. Esse tempo espiritual não é, a nosso ver, uma simples abstração do tempo vital. Com efeito, o tempo do pensamento possui uma tal superioridade em relação ao tempo da vida que ele pode por vezes comandar a ação vital e o repouso vital. (idem, p. 86)
Também, os versos da segunda parte, motivados pela cor local, — com toda a ênfase e toda a pormenorização que lhe é dada — parecem corroborar tal interpretação. Se esta leitura é aceitável, então a mulher também exerce, além da função antropomorfizadora da natureza, o importante papel de ser a porta (outra figura erótica) para um mundo iniciático, ainda que a memória seja a primeira instância (prerrogativa) desse processo ascensional. Cresce o interesse pelo mar no adensamento dessa relação sujeito lírico/natureza, pois a mulher é tradutora do universo poético praieiro (re-presentação arte-memorialística de Saquarema):
Outra vez... Grandioso e lindo
Quadro em que a vista se enleia:
Nascera, do mar saindo,
O globo da lua cheia.
E o mar e as ilhas fronteiras;
Nas ilhas, ao rés do mar,
Sonhando, esguias palmeiras
Imóveis à luz do luar;
E além da ponta onde esbarra
A água em rolos espumantes,
A capelinha da barra
Amada dos navegantes;
O farol que as vagas olha,
Caieiras longe a alvejar,
A praia onde o cardo abrolha,
Alçando os braços ao luar;
Choupanas de pescadores,
Barcos de proa luzente,
Sem remos, sem remadores,
Dormindo na água dormente;
[...]
(OLIVEIRA, 1978: II, 386)
Natália (1911) — por também se embeber de temas memorialísticos — reúne poemas que transubstanciam, mais uma vez, a região praieira de Saquarema, pertencente a esse já conhecido circuito de infância e adolescência. Este opúsculo se divide em quatro partes (ou poemas longos): “Caminho de Saudade”, “O Rancho da Serra”, “Velha Fazenda” e “Alma Oceânica”, com destaque para a primeira e a terceira. O tema memorialístico é explícito na referência a topônimos ou cor local, e cada parte (ou poema longo) parece versar sobre um ou mais recantos desse lugar agreste (plantação, alagados, rios, fazendas, praia, etc.), sempre enquanto re-presentações artísticas.
Percebe-se o vínculo emocional do sujeito lírico com as plagas litorâneas, tal como neste fragmento da primeira parte intitulada “Caminho de Saudade”:
I -
Iam vinte anos desde aquele dia,
Em que com os meus, da terra onde nascera,
Adolescente ainda, eu me partia.
O que não dera então, o que não dera
Ainda hoje por tornar atrás comigo,
Entrar-lhe os campos, ser o mesmo que era!
Lá me ficava com seu tecto amigo
A velha casa, a várzea verde em flores,
E verde em flores o pomar antigo;
E o engenho, a encher aqueles arredores
Com o seu bufido, com o bater pausado
Das pás cantantes dos ventiladores;
Tudo quanto em menino havia amado,
E em que minh’alma nova, a abrir-se, rindo,
Tinha parte de si talvez deixado,
Em vôo, ao pé do rio, às voltas indo,
Em vôo, em cada moita, airada e inquieta,
Qual das asas o pó dourado e lindo
Deixa por onde passa, a borboleta.
(OLIVEIRA, 1978: II, 545)
Note-se que toda a emoção sobre os elementos paisagísticos está associada com ânimos de infância: sobre “tudo quanto em menino havia amado”. A região praieira é explicitamente referida no penúltimo fragmento ainda de “Caminho de Saudade”:
IV –
[...]
Vejo ora campos e lavouras, ora
Duas faixas azuis: a da lagoa
E a do mar grosso a rebentar lá fora.
[...]
(idem, p. 549)
A cor local presenteia o ambiente com “campos”, “velha casa”, “várzea verde e em flores”, “pomar antigo”, “engenho” que povoaram o território íntimo desse “menino” que apreende, no ato de rememorar, sua partida, quando adolescente já, desse circuito que liga todos os distritos de Saquarema (Pontal, Palmital, Paróquia, etc.) e — por extensão e proximidade — harmoniza Itaboraí com as semelhantes lembranças de uma vida infanto-juvenil extremamente interiorana e familiar.
Já em “Velha Fazenda”, terceiro arranjo de poemas, o sujeito percebe a ação do tempo sobre os elementos paisagísticos, principalmente de sua morada na infância:
I –
Vi na extensão de um vale ermo e profundo,
A que o sol da manhã com a luz feria,
Montão de estroços, desabado mundo,
Roto arcabouço, rota escadaria,
Inúteis rotas máquinas, e em roda
Prostrados muros. Sobre a ruinaria,
— Troféu do excídio, dominando-a toda,
Com férreos dentes a morder o estrago,
Jazia escura desmontada roda.
— “Velho, que vem a ser aquilo?”indago,
Olhando o esbrôo. Respondeu: — “Daquelas
Ruínas no coração a imagem trago. [...]
(OLIVEIRA, 1978: II, 567)
Segundo Walter Benjamim (1990), as alegorias inferem na obra de arte um caráter de ruína, palavra esta que ele eleva a conceito: a leitura, coberta de melancolia, que o artista faz do processo histórico enquanto careação, feita pela morte, do humano. Há profundas relações entre alegoria, conceituada por Benjamim, e memória, enquanto testemunho da ação e interpenetração dos tempos. Esse amálgama é notório na obra de Alberto de Oliveira, principalmente na Terceira Série.
Qual o sentido velado por trás dessa ruína da fazenda? Não é descabido pensar na passagem do campo para a cidade, passagem esta marcada sobretudo pela perda: o sujeito poético perde o contato físico com os logradouros agrários, queixando-se da insalubridade do ambiente urbano em favor de um panegírico da vida rural. Conta, também, no seu discurso lírico, que as paisagens naturais transitam entre o passado e o presente, pelo processo de memória, uma vez sendo seu ambiente familiar de infância.
Este recorte sobre os temas memorialísticos nas 2ª e 3ª Séries de Poesias de Alberto de Oliveira abre outras leituras possíveis, a depender da profundidade da análise. Pode-se adiantar, não obstante, que esse memorialismo desvela um sentido mais profundo para a vida, no qual se vê a ação imperdoável do tempo — traduzido na alma pela nota singular da saudade — fazendo tudo, do que foi, mui diferente, como disse o poeta patrono da cadeira de Oliveira na Academia Brasileira de Letras.
Há que se ressaltar sempre o esforço de um homem que supera os obstáculos da vida, emergindo da pobreza dos campos da Baixada Litorânea para Chefe de Instrução Pública do próprio Estado em que nasceu e viveu. Em sua obra poética, por outro lado, percebe-se que o sujeito lírico não se desvencilha da terra natal, identificada, pelo fenômeno da amplificação, com a natureza exuberante de lugares tão diferentes. Mas há, por certo, uma preferência pelas regiões oceânicas — re-criações das paisagens naturais que o poeta, na infância, contemplou.
Por isto, as Poesias de Alberto de Oliveira, longe de refutarem o passado de muita peleja, pelo contrário, resgatam, através da memória, o que há de mais humano (e portanto o que mais significou) nessa história: é tudo que sobrevive ante o choque reificante da cidade — seja a beleza natural, inspiração para a recriação artística das paisagens fluminenses; seja o sentimento amoroso ou extasiante, próprio de um sujeito (trasladado para o discurso poético) que frui imagens de nativos (principalmente familiares e mulheres) e da biodiversidade local.
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