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sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Carlos Drummond de Andrade



Até que você não pode queixar-se, meu mano: o astrólogo previu sua morte em 1966, e quem morreu foi o astrólogo. E não foi você que o matou; foi uma ceia de Natal à go go. É certo que, durante o ano, a profecia esvoaçou em torno de você que nem pernilongo enxerido; enxotada, vinha de novo e zumbia. Mas também é certo que ninguém parecia rejubilar-se com ela; a afeição de uns, e, para outros, o fato de você não deixar vaga em cartório nem em diretoria de banco terão contribuído para isso. E a vidinha foi tocada pra frente, sem lances históricos nem medalhas, mas igualmente sem IPM. Em suma, individualmente, o ano lhe foi camarada. As dores maiores foram cívicas; a bem dizer, tristezas à beira-mar, que o mar se encarrega de repelir, com seu espetáculo de grandeza e força. Quem mora perto dele encontra sempre intimação para acreditar na vida. E esse País, mano, lembra o mar, coisa grande e bela em si, na variedade de formas, de ímpetos ritmados.

Agora, você vai repetir aquela velha brincadeira de começar tudo de novo, isto é, de fingir quê, sem conscientizar (eta palavrinha antipática) que está fingindo quê. Não importa. Esse faz de conta de começar outra vez (desta vez, melhor) é uma das astúcias do homem para manter alerta o seu lado menino, e o lado menino hoje cresceu tanto que faz a gente ter certa esperança na humanidade. Essas roupas moderninhas de cavalheiros e damas, que pelo menos divertem, esses jogos, essas coleções de miniaturas, esses campeonatos de canto de curió, tudo a que é infantil no comportamento adulto, inclusive e principalmente a ambição de chegar à lua cada qual primeiro que o outro, são as minhas razões de confiar. Confiar é exagero, mas de esperar alguma coisa de bom de meu semelhante, isto é, de você, de mim mesmo.





E não me venha, no dia 2, com a lamentação de que isso e mais aquilo e aquilo outro subiram tão de preço a partir de 1º de janeiro que tudo agora vai ser mais impossível do que já era no dia 31 de dezembro, quando as impossibilidades reunidas e somadas desde a fundação do País pelo almirante realizaram esta maravilha: era praticamente impossível viver, e vivia-se. A vida é talvez um milagre dentro do qual subjugamos todas as negações. Não há imposto de circulação de mercadorias nem alta da gasolina nem nada que impeça o milagre cotidiano de alguém acordar e rever-se no mesmo espelho e sentir que o rosto lavado perde a fadiga sebosa do rosto noturno, e tudo é um vir-a-ser. Você, aliás, é doutor-de-Salamanca em filosofias baratas, e com elas tem divertido o seu caminho já longo. Distraia-se em cultivá-las, mano, enquanto não vem outro astrólogo de luneta mais sábia.

E para que esta conversa não resulte demasiado individual em tempos de comunicação reclamada a todos para todos, invente aí qualquer coisa que possa alcançar o seu vizinho e despertar nele o desejo de comunicá-la a outro vizinho, e este a outro, e outro a outro, até os grandes da Terra, tão coitadinhos na solidão do poder; invente qualquer coisa, olhar compreensivo, gesto, palavra. Não achou? Então recorra ao dicionário, tire de lá paciência, tire boa vontade. Use-as. Não há melhor chiclete, meu mano, para a humanidade mascar.©
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