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sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Ministério da Cultura

Do MinC 1 ao Minc2: a Cultura e a Retórica da Gestão no Brasil

por Idelber Avelar, do blog  O Biscoito Fino e a Massa
Na discussão sobre o furdunço gerado a partir da remoção da licença Creative Commons do site do Ministério da Cultura—debate que gerou ótimos textos ou entrevistas, como a de Sérgio Amadeu ao Luiz Carlos Azenha, o de Marco Aurélio Weissheimer e, de um outro ponto de vista, o de Lady Rasta–, fica nítida uma coisa e nem tão nítida mais uma, pelo menos. É claro que há, no Ministério de Cultura atual, um certo grau de ruptura, tanto no discurso como na prática, com a gestão anterior (que é uma só, Gil/Juca). Ruptura comparável não se observa nem mesmo nos ministérios maiores e mais ricos que passaram do PMDB para o PT, como Saúde e Comunicações.
Menos óbvio é o fato de que a coalizão que sustenta a Ministra Ana de Hollanda é heterogênea, e dizer “a Ministra do ECAD” é tão falso como foi o retruque da própria Ministra, quando afirmou que “a relação que tenho com o ECAD é a mesma que têm Gil, Chico, Caetano”. A assertiva da Ministra não procede pelo menos por duas razões. Ela não representa—com todo o respeito—, como autora, o mesmo que os três citados, é óbvio. Isso tem consequências enormes para a questão dos direitos autorais. O segundo motivo é que ela não mantém, com as posições defendidas pelo ECAD sobre os direitos de autor, a mesma relação que mantém, por exemplo, Gilberto Gil. Essa é a questão.
Para constatá-lo, basta ler o discurso de posse da própria Ministra, em especial o décimo parágrafo, em que ela, em clássico ato falho freudiano, afirma o que não eliminará do Ministério:
É claro que vamos dar continuidade a iniciativas como os Pontos de Cultura, programas e projetos do Mais Cultura, intervenções culturais e urbanísticas já aprovadas ou em andamento – como as ações urbanas previstas no PAC 2, com suas praças, jardins, equipamentos de lazer e bibliotecas. E as obras do PAC das Cidades Históricas, destinadas a iluminar memórias brasileiras. Enfim, minha gestão jamais será sinônimo de abandono do que foi ou está sendo feito. Não quero a casa arrumada pela metade. Coisas se desfazendo pelo caminho. Pinturas deixadas no cavalete por falta de tinta.
Afirmações sobre o que você não vai interromper no governo são comuns quando a oposição ganha as eleições. Você quer assegurar ao cidadão que as coisas boas da gestão anterior serão mantidas. Não fazem muito sentido quando a situação ganha, especialmente num caso como o do Brasil 2010, em que tudo na identidade da candidatura Dilma dizia que ela era a situação, a candidata de Lula. No entanto, no Ministério da Cultura, o discurso de posse oferecia um rol de não-mudanças. A função da lista era falar/calar o que, sim, ia mudar na prática do Ministério.
Um balanço do que fez a gestão Juca/Gil na Cultura está fora do escopo e até das possibilidades deste post, mas uma coisa deveria ser mencionada na transição entre o MinC Lula e o MinC Dilma. Seja qual for sua opinião sobre o trabalho anterior (e a minha é positiva, por mais que eu veja uma ou outra coisa que criticar), um dos traços inegáveis da gestão Juca/Gil foi retirar a discussão acerca de qual conteúdo cultural privilegiar–debate histórico da esquerda brasileira quando se tratava de cultura—e enfocar-se preferencialmente na criação de condições políticas, econômicas e jurídicas para a circulação de cultura, independente de seu conteúdo. É uma diferença chave.
No primeiro modelo, você tende a ficar preso em debates sobre se o samba de roda (e não o funk carioca, por exemplo) deveria ser merecedor de incentivo estatal; debates sobre o que é cultura legitima ou autenticamente brasileira; sobre qual conteúdo, enfim, deve ter a cultura para que ela seja amparada no Ministério. No segundo modelo, nada disso importa. Trata-se de criar condições para que toda e qualquer iniciativa cultural circule com maior amplitude possível, sem impedimentos de ordem econômica ou jurídica. É neste contexto que entendo iniciativas como o incentivo aos Pontos de Cultura, ao Creative Commons e ao software livre, além de várias outras ações do Ministério Gil/Juca como os mencionados na Carta Aberta da Cultura Digital à Dilma e à Ana de Hollanda: o Fórum de Mídia Livre, o Fórum da Cultura Digital, a iniciativa de revisão da lei de direitos autorais, a recusa a propostas irracionais de criminalização da rede, a construção do Marco Civil da Internet e a rejeição ao ACTA .
O incrível, então, é que, no Ministério Juca/ Gil, a Cultura deixa de ser focalizada em termos de conteúdo, e passa a ganhar mais relevo a questão legal-econômica. Daí o discurso, audível em algumas comarcas, de que o Ministério da Cultura teria se “hipertrofiado”, tucanês para “metido o bedelho em coisa que não é de sua conta”. A abordagem passa a genuinamente incomodar interesses privados de apropriação dos bens culturais. Sobre o papel da rede mundial de computadores nesse processo (tema de uma canção do ex-Ministro, aliás), basta ler os textos do Professor Sérgio Amadeu, autoridade no assunto, para entender por que a gestão Gil / Juca contraria interesses transnacionais poderosíssimos.
Estava, como sempre, corretíssimo ao dar a notícia o Renato Rovai, quando anunciou em 1ª mão que a nomeação de Ana de Hollanda representava a vitória de um grupo petista que havia bancado seu nome. No Rio de Janeiro, a expressão maior, não é segredo para ninguém, é Antonio Grassi, grande nome da teledramartugia que também é muito conhecido, respeitado, dentro do PT, com grande capilaridade no partido, por motivos óbvios: é um petista histórico, que faz campanha desde sempre. Conta também com nítida simpatia em setores dos grupos de mídia brasileiros.
O curioso é que o fundamental da frente que torna possível a candidatura de Ana de Hollanda passa pelo PT, mas não do Rio, embora, reitero, a notícia do Rovai tenha sido exata: a chancelaria imediata do nome Ana de Hollanda tinha importante âncora em Grassi. Há uma chancela que atravessa a máquina partidária e que, no caso do MinC Dilma, remete a nomes paulistas e mineiros (para não ir mais longe, não é segredo que Fernando Pimentel é muito próximo a Dilma, nem que Palocci é uma chancelaria e ancoragem forte). E há também uma liga que é a que realmente entra em interlocução com Dilma no processo MinC, uma liga baiana. Nesse grupo, destaque-se um nome próximo a Dilma, que tem por bons motivos o respeito da Presidenta, e a quem ninguém com bom senso negaria a condição de um grandes pensadores da cultura brasileira. Falo de Antonio Risério, que compartilha, quase todos reconhecem isso, muito mais com os valores, concepções, pautas e inspirações do Ministério Juca/ Gil do que com aqueles do Ministério Ana de Hollanda—embora, por ruptura pessoal, dolorosa e complicada de se analisar no Minc 2004, as relações de Risério com Gil, e deste com um amigo muito próximo de toda a vida, Roberto Pinho, tenham se estremecido.
Mas, se a notícia de Rovai estava certa—i.e., a ascensão de Ana de Hollanda foi vitória de grupo petista, e se a política do atual Ministério indica que vai capar, decepar, castrar a mais ousada característica da gestão Juca/ Gil, como é possível explicar esse paradoxo, o de que o PT tenha passado a ser representante de uma visão privatista de cultura, e de que um pensador bem mais afim a Gil que ao privatismo, histórico partícipe de campanhas do PT, tenha cumprido um papel nessa transição? É mais complexo do que parece, porque vários setores do PT (para não ir mais longe, o PT-BA, partes–minoritárias– do PT-MG, incontáveis petistas que trabalharam no Minc anterior) favoreciam a permanência de Juca Ferreira ao leme, embora ambos ex-Ministros sejam filiados ao PV. Esse setor não se articula muito bem no processo.
Este é um dos nós da transição do Minc 1 ao Minc 2: a heterogênea frente que torna possível a nomeação de Ana de Hollanda.
Na nomeação para o Ministério da Cultura, a Presidenta entendia—com muito boas razões, diga-se—que se tratava de uma boa pasta para contribuir ao contingente feminino na Esplanada dos Ministérios. Sabendo que o PMDB não vai nomear mulher nenhuma, já tendo os nomes dos Mantega e Palocci para uma série de pastas, e comprometida com a questão, não é de se surpreender que Dilma tenha reservado atenção ao MinC no que se refere a gênero. Nesse contexto, o principal nome a aparecer para apreciação foi o da historiadora e pesquisadora mineira Heloísa Starling. Por várias razões que têm a ver com a composição da frente artística e de cultura de apoio à Dilma, e também com o estado de esfacelamento do PT mineiro—e o blog realmente não apurou até que ponto a Profa. Heloísa quis ser Ministra, em todo caso–, o fato é que o nome da Professora Titular da UFMG não foi adiante.
Ao longo da campanha, outras figuras da cultura tiveram presença importante, como Emir Sader, professor/ editor com históricas ligações com a militância do PT, recém nomeado por Ana de Hollanda para dirigir a Fundação Casa de Rui Barbosa, e chave na organização de importante evento de virada, o ato dos artistas e intelectuais em apoio a Dilma, no Rio de Janeiro.
Estava ali presente uma enorme lista de apoiadores de Dilma na música, no cinema, na TV, na literatura, na universidade, nas artes plásticas. Surpreendente para os mais incautos, também estava no gigante evento alguém de campo claramente antagônico às políticas da gestão Gil/ Juca: Barretão, ou Luiz Carlos Barreto, produtor importante sempre que se fala em política cultural no Brasil. Por boas razões, Barretão passou a ser visto como uma espécie de metonímia dos interesses dos grandes grupos áudio-visuais em geral, e da Globo em particular, quando se discute a formulação de políticas públicas para a cultura no Brasil.
Antes da nomeação do novo MinC, um grupo de artistas se mobilizou pela permanência de Juca, o #ficaJuca bombou no Twitter, mas no mundo real as coisas seguiam outro curso. Isso era, em parte, coerente com a própria filosofia implantada na gestão Gil/Juca, o privilégio às ações disseminadas, rizomáticas, sem comando, confiantes no espontaneísmo geek. Em meio à briga cerrada, de foice, entre macacos velhos que é o processo de nomeação a um Ministério com hegemonia em disputa, convenhamos que não costuma ser a tática mais apropriada. Juca foi presa fácil para a coalizão—heterogênea–de interesses que se reuniam contra ele.
Do ponto de vista das pautas que o Ministério Juca passou a representar, que é o mais importante—e não conheço melhor resumo delas que a carta do pessoal da Cultura Digital à Dilma e à Ana de Hollanda–, muita coisa ainda pode ser feita. Ter claro quais são essas pautas e forçar o atual Ministério a colocá-las em discussão de forma aberta seria um bom começo. Entender que nem todos os setores que bancam a nova Ministra compartilham o compromisso de eliminar ou desqualificar essas pautas seria importante também.
Mas não há dúvidas de que muita coisa, a partir de aqui, será morro acima.

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