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domingo, 4 de setembro de 2011

Na rota do Chá e cavalos

National Geographic Brasil
Na estrada esquecida
Quando o chá valia mais que a porcelana ou a seda, tropas de animais percorriam o caminho sinuoso do desfiladeiro Zar Gama, a 4,6 mil metros de altitude, na Rota de Chá e Cavalos. Hoje o mesmo trajeto é feito de carro ou caminhão.

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No interior da região montanhosa do oeste de Sichuan, abro caminho por um bambuzal em busca de uma trilha lendária. Apenas 60 anos atrás, quando grande parte da Ásia ainda se movia a pé ou no lombo de animais, a Rota de Chá e Cavalos era uma importante via de comércio e a principal ligação entre a China e o Tibet. Apesar disso, eu não tinha certeza de que minha busca seria bem-sucedida. Poucos dias antes, conheci um homem que costumava levar nas costas pesados fardos de chá por esse caminho, e ele me alertou de que a passagem do tempo, as intempéries e o avanço da mata talvez tivessem eliminado a rota. Então, após um forte golpe de machado, o bambu tomba. E surge mais adiante, insinuando-se através da mata e com pouco mais de 1 metro de largura, uma trilha de pedras arredondadas escorregadia por causa do limo e quase encoberta pela vegetação. Algumas das pedras estão marcadas por depressões cheias de água, produzidas pela ponta de metal das muletas usadas por centenas de milhares de carregadores que fizeram esse caminho durante um milênio.

Esse trecho remanescente da estrada calçada estende-se por apenas 15 metros, elevando-se por um grupo de degraus arruinados e depois voltando a sumir, desfeito por anos e anos de monções diluvianas. Sigo em frente e entro por uma estreita passagem cujas laterais são tão íngremes e escorregadias que tenho de me agarrar às árvores para não cair no riacho lá embaixo. Minha esperança é de que, em algum ponto, seja possível cruzar o Maan Shan, um desfiladeiro montanhoso entre Yaan e Kangding.

À noite, monto o acampamento bem acima do riacho. A chuva fustiga a barraca. Na manhã seguinte, avanço com dificuldade mais 500 metros até topar com um paredão de selva intransponível. Fim do caminho. Sou obrigado a reconhecer que, pelo menos aqui, não sobrou nada da Rota de Chá e Cavalos.

Na verdade, grande parte do caminho original não existe mais. Empenhada em modernizar-se, a China vem, com toda a celeridade possível, passando como um trator sobre o seu passado. E, antes que a rota seja terraplanada ou obliterada, aqui estou para explorar o que resta desse caminho hoje quase esquecido.

A antiga rota estendia-se por 2 250 quilômetros, desde Yaan, na região de cultivo de chá da província chinesa de Sichuan, até Lhasa, a capital do Tibet, a 3 650 metros de altitude. Uma das mais altas e difíceis trilhas da Ásia, ela ia subindo desde os vales verdejantes, atravessava a agreste paisagem devastada pelo vento e a neve no planalto tibetano, cruzava os gélidos rios Yang-tsé, Mekong e Salween, penetrava na misteriosa cordilheira Nyainqentanglha, passava por quatro desfiladeiros a 5 mil metros de altitude e por fim desembocava na cidade sagrada tibetana.

As tempestades de neve muitas vezes encobriam o trecho oeste do caminho, e chuvas torrenciais arruinavam a porção leste. Os bandidos eram uma ameaça permanente. Ainda assim, a trilha foi usada durante séculos, mesmo com o desprezo mútuo a que se votavam as culturas existentes em suas extremidades (algo notável até hoje). A necessidade de trocas comerciais era a razão de ser da estrada, não o romântico intercâmbio de ideias e éticas, cultura e criatividade associado à Rota da Seda, mais ao norte. A China tinha algo que o Tibet queria: chá. E o Tibet tinha algo que a China precisava: cavalos.

Hoje a trilha sobrevive na lembrança de gente como Luo Yong Fu, um ancião de 92 anos e olhos lacrimosos que conheci no vilarejo de Changheba, a dez dias de caminhada a oeste de Yaan, quando o trecho era percorrido pelos carregadores de chá. Ao chegar a Sichuan, disseram que eu não iria encontrar nenhum carregador de chá ainda vivo. No entanto, nos últimos trechos do Chamagudao, o nome chinês da antiga rota comercial, conheço não apenas Luo como também outros cinco ex-carregadores, todos ansiosos para contar suas histórias. Encurvado mas ainda vigoroso, Luo Yong Fu veste uma túnica Mao azul, de cujo bolso desponta um cachimbo, e uma boina preta.

De 1935 a 1949, ele foi carregador na Rota de Chá e Cavalos. Os fardos de chá que Luo levava nas costas pesavam no mínimo 60 quilos. Na época, o homem tinha menos de 51 quilos. "Os obstáculos eram imensos e era muito duro", comenta. "Era um trabalho horrível."

Luo havia atravessado várias vezes o Maan Shan, o trecho que me interessava conhecer. Ali, no inverno, a camada de neve chega a 1 metro de altura, e nos rochedos havia pingentes de gelo medindo 2 metros. Ele me conta que a última vez que alguém havia cruzado o desfiladeiro fora em 1966. Por isso, duvidava do meu plano.

Como consolo, tive um vislumbre do que deve ter sido circular pela estrada. Em Xinkaitian, a primeira parada no trajeto de 20 dias que os carregadores de chá enfrentavam para ir de Yaan a Kangding, Gan Shao Yu, de 87 anos, e o barbudo Li Wen Liang, de 78, insistiram em exibir como era a vida deles. Com as costas dobradas sob imensos fardos imaginários de chá prensado, as mãos agarradas às muletas em forma de T, a cabeça abaixada e os olhos fitando os pés afastados, os dois velhos mostram como avançavam tateantes em fila única por um trecho úmido de pedras arredondadas. Depois de sete passos, Gan faz uma pausa e bate três vezes no chão com a muleta, de acordo com a tradição. Ambos então colocam a muleta para trás a fim de nela apoiar a estrutura de madeira com o fardo de chá. Limpando o suor do rosto com imaginárias vassourinhas de bambu, entoam com voz rouca a canção dos carregadores de chá:

Cinco passos na subida, hora de descansar.

Oito passos na descida, hora de descansar.

Onze passos no plano, hora de descansar.

Pobre daquele que não descansa.

Os carregadores, homens ou mulheres, levavam cargas de 70 a 90 quilos - os homens mais fortes chegavam a carregar até 135 quilos. Vestindo farrapos e sandálias de palha, eles usavam rústicos crampons para cruzar desfiladeiros nevados. "Claro que alguns ficavam pelo caminho", diz com solenidade Gan. "Quem era surpreendido por uma tempestade de neve morria."

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