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quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Artesanato

OLHANDO PARA ECKHOUT
 
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Insisto no tema: quando o artesanato é de tradição, a interferência no saber fazer deve se orientar por uma única palavra: respeito. Respeito ao mestre e à sua perícia, aos artesãos e à sua tradição, respeito ao entorno, ao meio ambiente, especialmente nos casos em que a matéria-prima do artesanato é obtida por meio do extrativismo, como acontece com os trançados, o entalhe em madeira e a cerâmica.
Como proceder para que a recomendação não seja meramente retórica? Ou, mais complicado, para que o respeito almejado não se renda ao imobilismo preservacionista?
O respeito nas políticas de valorização do artesanato de tradição deve partir de um gesto simples: olhar para o que é feito e buscar estabelecer com esse produto de artesanato e com o seu artífice - mestres e artesãos - um diálogo delicado. Estabelecer pontes com o mundo, alargar fronteiras sem atropelar o que sustenta o processo criativo e o ritmo próprio de quem sabe fazer.
Bom exemplo vem de Pitimbu, município de cerca de 14 mil habitantes situado no litoral sul da costa paraibana, onde um grupo de artesãos se formou em torno da mestra Dona Zefinha (Maria José do Nascimennto), beirando, à época,  70 anos de idade.
Dona Zefinha tem muito orgulho do seu saber fazer: um delicado trançado feito com a fibra de coco, aprendido em menina e aperfeiçoado numa longa vida de luta. Sabemos que o domínio de uma técnica proporciona respeito próprio e individualiza a pessoa que detém a perícia. Dona Zefinha, como todo mestre artesão, costuma exibir sua capacidade para os outros como uma forma de conquistar prestígio e receber elogios. Mas a exibição da maestria, algo inerente a quem a detém, também pode ser motivada pelo esforço de ensinar aos outros, de orientá-los. É isso que o Artesanato Solidário procura reforçar nos mestres: a exibição da perícia motivada pela própria capacidade de transmiti-la a outras pessoas da localidade.
Para obter a delgada fibra de coco para o trançado, Dona Zefinha ensinou aos aprendizes mobilizados para participar do projeto desenvolvido pelo Artesanato Solidário a utilizarem uma tampa de lata, do tipo Leite Ninho ou Nescau, repleta de furos de diversos diâmetros. As fibras, depois de muito bem lavadas e desfiadas, são passadas e repassadas nessa peneira irregular até se tornarem finas e maleáveis o bastante para serem trançadas.
No início, poucos conseguiam “levantar” uma cesta, ou seja, criar objetos tridimensionais, embora a maioria já estivesse familiarizada com a preparação da matéria-prima e com os pontos do trançado. Assim, em pouco mais de três meses, e superando algumas dificuldades de aprendizado e de relacionamento entre eles, o grupo de artesãos estava formado e todos suficientemente aptos para produzir a peça ensinada pela mestra: uma cestinha, cuja tampa traz em uma das extremidades a cabeça de uma galinha e em outra, o rabo.
Mas o processo de produção atingira seu ponto crítico. O problema não estava no fato de os aprendizes produzirem, com variados graus de habilidade, as cestas-galinha, tornado-as desiguais em qualidade, mas sim no de apenas reproduzirem a peça autoral da mestra Zefinha e não tentarem nenhuma inovação. Se a imitação do mestre serviu ao aprendizado, era necessário superá-la, criar novos produtos, libertar os artesãos da peça- modelo, torná-los também criadores e protagonistas. Mas como proceder? Desenhar outros objetos para que os artesãos os copiassem? Contratar um designer para ministrar oficinas de criação?
Enquanto se imaginava uma saída, indagou-se aos artesãos por que faziam sempre a mesma cestinha da mestra, sem alterar uma só pena da galinha representada. Na pronta resposta - “fazemos o que costumamos ver” - estava a pista: era preciso ampliar o repertório dos artesãos, educar o olhar.
Numa dessas boas coincidências da vida, acontecia na época em Recife, distante poucos quilômetros de Pitimbu, uma exposição dos quadros de Eckhout, pintor holandês que retratou o povo e a paisagem pernambucana a convite de Maurício de Nassau, então governador dessa capitania.  Em um acertado insight, o Artesanato Solidário promoveu12 o encontro dos artesãos de Pitimbu com a arte de Eckhout.
Na visita à exposição, os artesãos descobriram novos modos de ver, perceberam que a exuberância das frutas e flores tropicais presentes nos quadros do pintor holandês lhes era próxima e poderia ser traduzida em trançados tridimensionais com a fibra de coco. Nascia assim a coleção de flores e frutas de Pitimbu, à qual desde então, os artesãos incorporam novas criações.
Mais do que uma experiência com a arte de um pintor que vivera três séculos antes e percorrera a mesma região, os artesãos de Pitimbu aprenderam a olhar para o entorno e para o mundo de modo diferente.
A promoção desse diálogo não aconteceu por acaso; ao contrário, mostra uma intenção que se orienta por uma noção de cultura popular entendida como compromisso, voltada para apreender diferenças, mas não para impor limites. Cultura popular, no melhor uso da expressão: desejo de ultrapassar fronteiras e estabelecer comunicações.
Assim, na conceituação e no entendimento de cultura popular, bem como no trabalho com suas expressões, no caso o artesanato de tradição, o desafio deve ser sempre o de ampliar o leque de possibilidades e de redistribuí-las.
 O encontro dos artesãos de Pitimbu com Eckhout é uma possível tradução do respeito que deve orientar nossas ações.

Autor:
Helena Sampaio

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