Autor: Tchello d’Barros
Umas
das boas saudades do milênio passado era um quiproquó cultural de
acaloradas discussões sobre a diferença entre pintores e artistas
plásticos. O amplo âmbito da querela se estendia de sofisticados
simpósios acadêmicos aos mais boêmios botequins.
Naquela época, coisa de poucas décadas atrás, era quase consenso entre os marchands,
de que pintores eram as pessoas que nas diversas técnicas e linguagens
da pintura, desenvolviam habilidades e virtuosismos, em especial a
mímese pictórica, aquela capacidade de reproduzir e mesmo criar
paisagens, retratos, naturezas-mortas e temas afins. Havia ainda os
versáteis, que atendiam encomendas de obras em linguagem geométrica,
abstrata, impressionista, o que fosse, etc. No mercado de artes, grosso
modo, poderia se dizer que um dos critérios para atestar a qualidade do
pintor era sua capacidade de reproduzir o real, de mimetizar a realidade
circundante em sua obra. Já os artistas plásticos, seriam aquelas
pessoas que desenvolviam uma linguagem peculiar, um estilo diferenciado,
ou uma técnica pessoal de executar as obras. Seria algo como uma
identidade visual, um jeito único, reconhecível. Quem não reconhece a
arte pop de Andy Warhol? Imortalizou-se. Essas pessoas, como ele, teriam
desenvolvido uma estética própria, uma expressão particularizada que
lhe conferia o título de artista plástico(a). Um exemplo seria um grupo
de pessoas entrando num ambiente e lá estão alguns quadros, cujo leitmotiv são
bandeirinhas coloridas. Não precisaria a pessoa chegar perto do quadro e
ler a assinatura, pois qualquer pessoa medianamente informada saberia
tratar-se de uma obra do Volpi. Do artista plástico Volpi. E o mesmo
conceito se estende às outras formas tradicionais das artes plásticas,
como o desenho, a gravura, a colagem, a escultura, enfim, as chamadas
belas artes.
Dadas
as subjetividades do meio, é claro que essa questão nunca foi
totalmente fechada, em certos momentos beirava a discutir o sexo dos
anjos, pois o bom senso e o bom gosto dizem que o que vale numa obra é
sua qualidade conceitual e formal, donde o fato incontestável que muitos
pintores sempre superaram uma imensa maioria de artistas plásticos com
obras de qualidade duvidosa, pra dizer o mínimo. Bem, a boa notícia é
que em todo o nosso Brasil e em todo o planeta, principalmente no
ocidente, existe um número imenso de apreciadores de arte, artistas e
compradores, que continuam produzindo e consumindo exatamente essas
modalidades ditas tradicionais, como a pintura
com seus temas de sempre. As pessoas gostam de ter na parede da sala um
quadro bonito, seja um acrílico sobre tela com paisagem, uma gravura
com vaso de flores, ou uma naturza-morta à óleo sobre eucatex. E ponto
final. A diferença é que cresce o número de apreciadores de arte
contemporânea. Há espaço e mercado para todos, coisa de nosso tempo.
Agora,
voltemos novamente algumas décadas, para lembrar que, as vanguardas e
os “ismos” das artes remontam ao início do século passado, e mesmo
antes, se considerarmos as experiências de Monet. Mas é fato notável que
os artistas do pós-guerra, decidiram rever profundamente seus conceitos
e a partir daí, de uma forma muito mais radical a arte implodiu e
explodiu concomitantemente, resultando em inovações, experimentalismos,
novas linguagens e meios, e ainda todo um hibridismo com outras
expressões artísticas, que o tradicional vocábulo das Artes Plásticas não conseguia mais abarcar. Não cabia muito bem ali a Performance Art, a Body Art, as Instalações, as Vídeo-artes, os Happennings, A Poesia Visual, a Fotografia experimental, as Assemblages e a Land Art, apenas para ficarmos em alguns exemplos mais emblemáticos. Nos países ditos hegemônicos, começou-se então a se usar o termo Visual Arts,
como uma forma de se dizer que o circuito das artes estava se
expandindo no sentido de abarcar essas novas formas de expressão. E por
circuito das artes entenda-se as instituições culturais, museus,
galerias de arte, universidades, mercado editorial e os personagens que
compunham esse sistema: críticos, marchands,
galeristas, gerentes de instituições, leiloeiros, museólogos,
professores de artes, colecionadores e os próprios artistas, claro.
Os
países ditos periféricos, incluindo o Brasil, foram aos poucos
assimilando o fim do modernismo e os avanços do que hoje, por falta de
nome melhor, ainda se chama de arte contemporânea. Mas havia ainda um
problema: como qualificar – ou rotular – os Parangolés de Hélio Oiticica, por exemplo? Como nominar experimentações como o polêmico Porco Empalhado,
de Nelson Leirner? Então, naturalmente que o sistema, ou circuito das
artes, foi aos poucos adotando a denominação de Artes Visuais, para
englobar as novas categorias de expressão, sem que em nenhum momento as
modalidades tradicionais – ou convencionais – fossem preteridas ou
excluídas. E surge aí um novo personagem no circuito, o curador, meio
que substituindo o marchand.
Reza
a lenda que a primeira instituição oficial, digamos assim, a assumir o
novo nome teria sido o CNPq, para poder dizer em seus editais de
pesquisa, que haveria espaço para as tais novas expressões. E na década
de noventa, as instituições e profissionais foram aos poucos assimilando
a nova nominação. Na atualidade, o Plano Nacional de Artes Visuais
(Minc/Funarte) diz que: As Artes
Plásticas - como foram até há pouco tempo conhecidas - ganharam nova
dimensão. Passam a ser conhecidas como Artes Visuais. Integram o círculo
das Artes Visuais aquelas formas de expressão artística que, tendo como
centro a visualidade, gerem - por quaisquer instrumentos e técnicas -
imagens, objetos e ações (materiais ou virtuais) apreensíveis,
necessariamente, através do sentido da visão, podendo ser ampliado a
outros sentidos. Partindo desse centro, o círculo se expande, agregando
suas diversas manifestações, até que a circunferência das Artes Visuais
alcance (e interpenetre) outros círculos das artes, centrados por outros
valores, gerando zonas de intersecção que abrigam manifestações mistas,
que não deixam de ser “visuais”, mas obedecem, com igual ou maior
ênfase, a outras lógicas. Este círculo e suas intersecções compõem o
campo das Artes Visuais. A definição sobre os campos das Artes Visuais
tem sido matéria de reflexão e debates sofisticados devido à sua
amplitude e à agregação de questões filosóficas. É necessário, antes de
qualquer diagnóstico, redefinir as Artes Visuais como um território que
incorpora hoje diversas áreas de expressão, além das Artes Plásticas
consideradas convencionais (pintura, escultura, desenho, gravura,
objeto).
Ora,
tudo estaria muito bem, se não fosse a recusa, ou desinformação de
muitos profissionais - e mesmo de alguns artistas - em aceitar a nova
terminologia. É claro que o gravurista sempre dirá que é um gravurista. O
escultor sempre dirá que é um escultor, independente do título de
artista plástico ou artista visual. Há quem diga que o assunto anima os
debates acadêmicos e mesmo aqueles citados botecos frequentados por
personas da seara cultural. Uns dirão mesmo que a discussão é estéril,
se considerarmos o que foi dito mais acima, que o que importa é a
qualidade da obra, isso certamente continua valendo para os dias de
hoje. No entanto, talvez o
buraco seja mais embaixo, como se diz, pois essa parcela peculiar, os da
recusa ou desinformação, geralmente adeptos das artes tradicionais,
muitas vezes não sabem que poderiam ser beneficiados pelos editais para
as Artes Visuais. Não desconfiam, que tem direito a participar de um
Salão de Artes Visuais. Que podem receber patrocínios para uma bolsa de
Artes Visuais, ou desenvolver uma pesquisa remunerada numa das chamadas
Residências para projetos em Artes Visuais. Desconsideram
a possibilidade de terem sua obra exposta ou publicada, porque tal ou
qual entidade usa a terminologia Artes Visuais. Quer dizer, há uma gama
de pessoas e artistas das vertentes mais convencionais (desenho,
pintura, escultura, etc.) que pensa que quando um assunto ou edital
trata de Artes Visuais, está tratando apenas de produção em arte
contemporânea (Instalações, Arte via novas tecnologias, site-specific,
etc.). Pensam que o assunto não é com eles, ou os benefícios não são
para eles. Um equívoco que impede que recebam apoios, incentivos e
patrocínios para a produção e circulação de sua produção.
Ora,
o que é avaliado pelos críticos, curadores e gestores culturais é a
qualidade da proposta poética de uma obra, a inventividade de um
processo criativo, ou mesmo a originalidade do conjunto de uma obra,
independente de a pessoa fazer xilogravuras (Samico) ou cyber-art
interativa (Eduardo Kak). De modo que podemos arrematar, numa analogia,
que assim como nem todo médico é proctologista, mas todo proctologista é
um médico, da mesma forma podemos dizer que nem todo artista visual é
gravurista, mas todo gravurista é um artista visual.
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