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O Torno - Origem e Características O uso do torno na produção de cerâmica já foi identificado por arqueólogos em peças de cerâmica de mais de 3000 anos de existência. Peças torneadas fazem parte da história da cerâmica tanto quanto da história da humanidade. O torno foi provavelmente uma das primeiras tecnologias desenvolvidas para a produção em grande escala. Com ele uma pessoa poderia sem maiores dificuldades, produzir recipientes para toda uma comunidade. As técnicas típicas de produção manual em cerâmica, ou seja, aquelas em que nenhum tipo de maquinário é utilizado, são morosas e promovem a produção de uma escala consideravelmente menor. Além disso, o número de peças deformadas e rachadas é também maior que aquelas torneadas. Também a secagem das peças ao torno se processa de forma mais tranqüila. Que mistérios haverão por trás dessas qualidades inerentes ao torno?. Inusitadamente uma peça torneada apresenta algumas características que fogem à nossa acuidade visual e que só podem ser percebidas por profissionais conhecedores dessa romântica forma de trabalho humano. Primeiramente as peças feitas no torno possuem uma constituição do tipo “monobloco”, sendo normalmente produzidas a partir de uma única porção de argila que vai sendo torneada e modelada até atingir a forma desejada. Em muitas técnicas de construção isso não ocorre. Essa estrutura monolítica dá as pecas torneadas uma resistência enorme, uma capacidade de “trabalhar” homogeneamente na secagem e de resistir melhor às perdas por rachaduras e rupturas na queima. Outra característica, ainda mais típica do torno, é que as partículas da argila sofrem uma orientação no sentido da rotação do torno, produzindo algo parecido como a trama formada pela superposição das escamas de um peixe.Este fenômeno se processa no momento em que a peça está passando pelo primeiro estágio do torneado, que é a centralização da argila no torno. Este efeito microscópico de orientação das camadas empilhadas confere a peça uma resistência ainda maior, frente a todas questões relativas à secagem, empenamento, deformação, ruptura, encolhimento e queima. Ainda existe outro aspecto que nos passa totalmente despercebido, mesmo quando observamos a louça cerâmica durante anos. Tipicamente as peças torneadas possuem formato cilíndrico, esférico, circular, arredondado, enfim, formatos torneados. Essas formas fazem com que as peças torneadas sejam fisicamente muito mais resistentes, pois sem pontas e arestas, elas se preservam muito mais durante os anos de uso. Além disso, qualquer força aplicada sobre a peça, como uma pancada, transmite-se pelos lados da peça e acaba se anulando no extremo oposto da peça. Pode parecer bobagem, mais as peças com essas características são muito mais resistentes ao uso freqüente e isso é uma propriedade muito interessante em objetos utilitários e funcionais do nosso uso cotidiano, como pratos, copos, jarras etc. Tanto isso é verdade que ainda hoje compramos pratos e xícaras com formas torneadas que não foram elaboradas no torno, pois a maior parte da nossa louça doméstica é produzida a partir do uso de argilas líquidas em moldes de gesso. Todas essas características acima e outras, surgem da singular essência do torno cerâmico — o princípio do equilíbrio das forças opostas. Um leigo que observe um oleiro trabalhando no torno, não tem idéia da sutil batalha que se trava entre as forças envolvidas nesse trabalho. A força centrípeta do peso da argila, a força centrífuga da rotação do torno, a força mecânica ascendente das mãos do ceramista e a força descendente da gravidade, travam uma luta para se impor. Se alguma delas conseguir a supremacia a peça será destruída. Só o equilíbrio entre essas forças componentes, resultará na construção de um objeto torneado. E que jamais esse equilíbrio se confunda com estabilidade, posto que o oleiro durante o torneado sai de uma postura bruta no início, onde tem que usar a força para centrar a massa disforme de argila, para uma postura delicada ao final do torneado, onde ele deve tocar delicadamente a peça, pois ela está amolecida pela umidade. A estabilidade no controle da argila só pode ser atingida pelo reconhecimento de que não existe uma estabilidade duradoura, mas apenas um equilíbrio momentâneo, precedido de outro desequilíbrio que deve ser novamente harmonizado. Assim, durante o torneado ocorre uma migração de uma atitude francamente masculina no início, pesado e mecânico, para outra postura essencialmente feminina, delicada, sutil e leve. É da harmonização desses opostos que nascem as peças no torno. Assim, como afirma o Budismo, o ato de tornear é um caminho do meio. Isto faz com que as pessoas que se apropriam dessa técnica, sejam mais tranqüilas, dóceis, maleáveis, equilibradas e dinâmicas, como o próprio ato de tornear. Dos oleiros são exigidas múltiplas competências, todas tão ancestrais como a própria cerâmica. Todas não literais, não verbais, não racionais, não científicas, não cerebrais. Competências primitivas, como alguém poderia definir. Mas por isso mesmo mais profundas e fundamentais. O sentir, a linguagem corporal, o conhecimento do corpo e a capacidade de perceber o não dito, o não visual. Tornear é usar o instinto, que nós seres modernos estamos perdendo ou abandonando em troca de novas exigências intelectuais. Por isso mesmo é um pouco complicado para os seres urbanos intelectualizados (como a maioria de nós), realizarem um encontro integral com as artes do torno, por elas exigirem competências sensoriais, tão ancestrais quanto à fome e a sede. A minha proposta é que nós usemos a cerâmica e especialmente com o torno, para resgatar esses instintos e que possamos voltar a aproveitar do que é tipicamente humano — O sentimento. Assim quando dizemos a um iniciante que as partículas da sua argila não estão organizadas, ele sente um desconforto muito grande, pois não é capaz de percebê-la. Isto por que essa propriedade não pode ser vista (com os olhos), mas apenas sentida. Um dia, sem que se anuncie, o instinto do praticante se manifesta e ele tem um reencontro com a sua linguagem corporal primata. A partir daí tudo fica mais simples. Tão simples e por isso mesmo tão complexo, uma vez que o essencial é o último a ser percebido por todos, como o óbvio. Uma vez que o oleiro precisa “ouvir” o eco dessas outras variantes, é também mais natural que ele desenvolva uma acuidade sensorial muito mais aprofundada do que a dos ceramistas que não usem o torno. O oleiro desenvolve um toque especial para desnudar e conhecer a argila, sua textura, ponto de umidade e homogeneidade, uma vez que para o seu trabalho isso é vital. Seu olhar se torna mais aguçado, especialmente sensível ao universo das proporções sutis, onde pequenas mudanças na forma podem melhorar ou destruir o desenho de uma peça. Ele também desenvolve um sentimento de desapego muito grande em relação a suas peças, conquistando uma profunda sensação de plenitude. Um grande ceramista japonês, mestre no torno, Shoji Hamada, não assinava suas peças argumentando que as peças deveriam ter vida própria, não precisando do aval do seu nome. A repetição, que é uma das qualidades do torno, às vezes é tratada pela visão ocidental da arte como uma expressão menor da criação. Muitos alunos me questionam se eu não me canso da repetição. E afirmam com a segurança dos gênios e dos ignorantes, que não querem se repetir. Como atingir a excelência sem se repetir? Como conquistar a prática sem praticar? Podemos nos repetir e tentar melhorar na próxima tentativa. Esse é o objetivo da repetição, atingir a essência, a síntese do nosso trabalho. Alguns artistas, pintores e escultores, afirmam que jamais se repetiriam, pois isso seria uma prova de deficiência criativa. Pois eu defendo um enfoque diferente. Não será uma prova cabal de criatividade, quando um pintor investindo em uma nova proposta de trabalho (comumente chamado de “nova fase”) passa meses trabalhando em uma nova linguagem ou técnica e ao final consegue produzir um trabalho de qualidade? Não existem elementos que se repetem, como o gesto da pincelada, conjunto de cores ou um método peculiar? Então por que não expandimos nossas mentes e percebemos o óbvio. O torno surgiu como uma forma de produção em massa e por isso a possibilidade de repetição é mais do que uma qualidade, uma necessidade. E isso de forma nenhuma impede que o oleiro possa produzir peças únicas com design elaborado. Seria a mesma coisa que por a culpa no pincel, por pinceladas inadequadas. Assim o torno, dependendo do foco de vista proposto, pode ser avaliado como uma prática tão primitiva, quanto contemporânea. Num tempo em que nos esforçamos para dar significado à nossas vidas, onde queremos encontrar formas de trabalho ecologicamente corretas e produtivas, que nos dêem o sentido da realização, a cerâmica aparece como uma alternativa a ser redescoberta. Muitas vezes ouço questionamento sobre um paradigma que se repete, seria a cerâmica uma forma de arte ou de artesanato? A cerâmica, especialmente o torno, supera a superficialidade dessa pergunta, sendo muito mais ampla do que só essas duas opções. Na verdade ela, dependendo do agente que a propõe, pode ser uma fantástica forma de produção artística, uma técnica de produção de objetos funcionais, uma forma de terapia, uma filosofia de vida e muito mais. Mas certamente sempre será um ofício, onde o homem pode se encontrar com uma forma digna de trabalhar e viver.Texto: Professor Tito Tortori, ceramista com ateliê no Rio de Janeiro-RJ. |
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