Moda feita com reciclagem
A moda tem uma fascinante capacidade de apropriação simbólica. Comprar uma peça de roupa significa comprar também ideias: romantismo, sensualidade, rebeldia ou conservadorismo, está tudo ali. Esse mecanismo é tão eficiente que faz esquecer dos desperdícios envolvidos nas etapas de produção. No entanto, a mais simples blusa é capaz de deixar um rastro de perdas e poluição dignos de vilã de novela.
A poluição pode ocorrer no descarte dos materiais usados em seu processo, por exemplo. Dos pesticidas utilizados nas plantações, passando pela emissão de gases de efeito estufa para o transporte das matérias-primas, há também uma das fases mais poluidoras: a do tingimento, em que corantes, alvejantes, gomas e lubrificantes contaminam não apenas o tecido, mas também grande quantidade de água.
A concorrência, a princípio, pode parecer que só piora o problema. Mas é justamente por causa dela que olhar para o descarte com uma visão estratégica pode fazer a diferença entre sobreviver ou morrer.
Integrante do Pólo de São Gonçalo, no Rio, a Pórus foi criada há 22 anos e há 6 trabalha com o conceito de responsabilidade socioambiental. Num primeiro momento, pela febre em torno do tema.
“Então, percebemos que, quando aproveitamos o descarte, há uma redução de 20% nos gastos com aviamentos”, revela Célia Martins, estilista e consultora operacional da marca. A Pórus utiliza os retalhos que seriam jogados fora depois de cortados os tecidos.
Mas tornar-se 'ecologicamente correto', no entanto, é complicado. A Pórus, por exemplo, alega que não pode dar o tratamento desejado ao seu lixo porque São Gonçalo não faz coleta seletiva.
A assessoria do município, no entanto, diz que faz, sim, coleta seletiva. Desde 20 de dezembro de 2010. Com dois caminhões adaptados. Para atender um município que, segundo o Censo de 2010, tem uma área de 248 km2 e 999.901 habitantes.
A empresa alega ainda que não pode exigir dos seus fornecedores que sejam 100% ambientalmente adequados: “Se a gente tenta pedir informações, o fornecedor desconversa”, revela Célia. Essa queixa, também foi ouvida de outras marcas.
Fornecedor de baixo impacto
No entanto, fornecedores comprometidos com uma baixa pegada ecológica estão no mercado, basta procurar. A Denovo, empresa paulista de reciclagem têxtil que participou do Fashion Business, no início deste ano no Rio, entrou em 2008 no ainda pequeno nicho de tecelagens que produzem tecidos 100% reciclados.
Fazendo uso da logística reversa, compram restos de algodão descartados pelas confecções, separam por cores e desfiam, chegando à matéria prima original, a fibra de algodão. Essa fibra natural é misturada à fibra de poliéster obtida a partir da reciclagem do Pet, responsável, segundo a Denovo, por aproximadamente 30% dos resíduos sólidos coletados nos municípios brasileiros.
O resultado é um tecido resistente, com diversidade de cores e texturas, e que vem ganhando espaço na coleção de marcas de como Osklen, Cantão e Lucy in the Sky.
O custo, no entanto, é elevado: “Uma lavanderia 100% ecológica custa de 4 a 6 vezes mais que uma poluidora, impactando no preço final do produto. Além disso, não existe nenhuma diferenciação de impostos, nem estadual nem federal, para as empresas com iniciativas ecologicamente corretas”, revela Mônica Boock, uma das sócias da Denovo
Modelo da Lucy in the Sky feito com tecidos reciclados Foto: Divulgação/Denovo
O alto custo de implementação de processos limpo na cadeia produtiva – assim como a complicada logística de reuso de matérias-primas que teriam como destino o descarte – é, de fato, um entrave à expansão do mercado de moda ecologicamente correta.
É o que aponta Manoel Lúcio Padreca, membro da diretoria do IBPqR – Instituto Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico de Reciclagem. Segundo ele, a maior parte dos resíduos têxteis não é aproveitada dentro da própria cadeia produtiva da moda, tendo um fim menos valorizado: vira acolchoamento antirruído de automóveis e matéria para a produção de estopa.
“As poucas produções (na moda) que utilizam os resíduos são pontuais e regionais e atendem a um mercado pequeno e seleto, que pode pagar mais caro por um produto que tem o destaque de origem. O consumidor é ‘ecólogo’ até saber o preço. Quando esse preço é maior, ele prefere ser somente financista.”, critica Padreca.
Uma saída seria criar incentivos fiscais para tornar a moda ecologicamente correta mais competitiva. Suzana Kahn, secretaria de economia verde da Secretaria do Ambiente Rio de Janeiro, defende que seja feita uma reforma tributária verde, com incentivo aos empresários empenhados em um processo produtivo limpo.
No entanto, segundo Suzana, o que há hoje é muito mais instrumentos restritivos que de incentivos. Ela ainda aponta para a falta de uma política de rastreabilidade da matéria-prima: “O produtor não consegue saber qual a origem de cada componente do seu produto”.
Para Ric Viana, consultor de marketing da Denovo, uma saída seria a criação de uma certificação governamental para produtos com baixa pegada ambiental, o que ajudaria estilistas e designers como Célia a identificar os melhores fornecedores. “Seria uma forma de incentivar as empresas a se tornarem verdes, já que uma certificação é sempre um destaque. Mas é preciso que seja um selo governamental, livre de interesses privados, para que sua isenção fique preservada”, defende o consultor.
São Paulo e Rio de Janeiro sinalizam diferenças
A Denovo está sediada em São Paulo. No estado mais industrializado do país, a ação de licenciamento e fiscalização de atividades industriais que afetam o meio ambiente é centralizada pela Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB). A companhia possui o programa Produção mais Limpa (P+L), que busca incutir nos produtores a mentalidade de preservação ambiental aliada à maior eficiência e produtividade global.
Um trabalho em parceria, por exemplo, foi implementado na Coats Corrente, empresa que produz linhas para costura, bordado, tricô e crochê. Com um consumo mensal de 60.000 m3 de água, a empresa substituiu seu abastecimento de água potável por água de reuso, proveniente da Estação de Tratamento de Esgoto Jesus Neto.
O investimento do projeto foi de 250 mil e a empresa obteve o retorno desse capital em dez meses, já que o custo da água de reuso é até 75% mais barato que o da água potável. Mais uma vez, aqui, o “descarte” usado como matéria-prima revela seu impacto na receita.
Já no Rio de Janeiro as ações de licenciamento e fiscalização são fragmentadas entre os órgãos estadual (para indústrias de grande porte) e municipais (de pequeno e médio porte), resultando no enfraquecimento de grandes ações de estímulo, como o programa Produção + Limpa, de São Paulo.
No entanto, quando o assunto é reciclagem, o estado fluminense desponta como bom exemplo. Olhar para materiais destinados ao descarte como matéria-prima é ponto crucial para que os empreendimentos de reciclagem cresçam.
É no que acredita Glauco Pessoa, presidente da Sindieco, Sindicato das Empresas Despoluidoras do Ambiente e Gestoras de Resíduos do Estado do Rio de Janeiro. Segundo seus dados para o Estado do Rio de Janeiro, as empresas de reciclagem geram aproximadamente 2,5 mil empregos diretos, 200 mil postos de trabalho indiretos, movimentam anualmente cerca de 2 bilhões de reais e processam mais de 2 milhões de toneladas de matéria prima reciclável entre papel e papelão, plástico, metais ferrosos e não ferrosos, madeira etc.
Os resíduos têxteis? Ainda estão fora das estatísticas. Mais uma prova de que, ironicamente, o setor da moda, sempre à frente no calendário quando se trata de lançar tendências, está atrasado quando o assunto é a estruturação ecológica de sua cadeia produtiva, incluindo aí Governo e consumidores.
(Oeco)
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