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O 'Sabático' ouviu autores de diferentes gerações: Armando Freitas Filho, Alice Ruiz, Augusto Massi, Mariana Ianelli e Nuno Ramos
10 de março de 2012 | 3h 00
AE
O poeta Carlos Drummond de Andrade
Sou um dos poucos que ainda restam que tiveram convívio com ele e essa é uma coisa que me dá até um pouco de aflição. Conheci Carlos Drummond primeiro em papel porque meu pai, em 1955, me deu dois livros: um de poemas de Manuel Bandeira e o Fazendeiro do Ar & Poesia Agora, de Carlos Drummond. Eu tinha 15 anos. Em 1956, meu pai voltou a me dar Bandeira e Carlos Drummond - desta vez foi um disco. Bandeira, que era o poeta dominante em meados dos anos 50, no lado A e Drummond no lado B. Assim, como eu já tinha começado a ler tão moço Bandeira, comecei a ouvir o lado A. De repente um dia virei o disco e esse lado B me sequestrou para sempre. Fiquei estupefato com aquela poesia absolutamente difícil e espetacularmente atraente, compreende? Não deixei Bandeira. Fui levado a ele por Bandeira.
Vim a conhecê-lo anos mais tarde, em 1963, quando fiz meu primeiro livro, que foi avaliado e recomendado por Bandeira. Na verdade, foi meu pai que entregou porque naquele tempo, com aquela idade, eu não tinha coragem de estar com eles. Quando estive com Bandeira eu tinha 22 anos e fui com meu pai porque me achava muito bobo para falar com Bandeira. No encontro, ele me dizia: "Você tem que levar o livro para Carlos Drummond". Mas não tive coragem e papai levou meu primeiro livro a ele, que respondeu mandando o Lições de Coisas com uma dedicatória muito afetuosa e estimulante. E comecei um contato com ele, que eu já vinha estudando desde os 15 anos. Eu fazia uma espécie de dever de casa que era copiar os poemas dele de que eu mais gostava a mão para fazer variações. Foi uma longa experiência que eu até hoje faço, mas não mais escrevendo e sim relendo, relendo, relendo. É como se aquele lado B estivesse tocando para sempre. Nunca parou de tocar e sempre foi tocante. Foi o encontro da minha vida.
Depois, já podendo estar sozinho com ele sem mediação, isso com 23, 24 anos até a morte dele, o encontrei muitas vezes. A influência dele era marcante não somente com o que ele escrevia, mas com o que ele falava.
Uma vez ele falou para Lelia Coelho Frota: "Você tem que ver os poemas que abrem o seu livro, os que jogam no meio e os que fecham". Fui até ele e perguntei como se fazia isso. Ele disse: "É você que tem que saber como se faz isso". Essa é uma coisa que procuro fazer sempre e me pergunto se estou fazendo certo. Ele dava uns toques assim; nunca era peremptório. Minha conversa com ele era mais sobre a vida, sobre o que eu devia fazer. Eu contava o que eu estava lendo e ele nunca me disse "você deve ler isso". Era muito delicado e carinhoso.
Tinha a questão engraçada de como falar com ele, como chamá-lo. Doutor? "Não sou", me respondia. Mestre ele tinha horror. Senhor Carlos ficava forçado. Até que um dia, ele vendo a minha dificuldade de nomeá-lo, virou-se e falou uma coisa muito bonita: "Eu sou amigo seu. Os amigos se tratam por você". Aí eu comecei a falar Carlos Drummond porque Carlos só era uma coisa demasiada. Usava o nome composto para cá e para lá até que ele me mandou uma foto com a dedicatória: "Ao poeta e amigo Armando, armado de poesia, o abraço do companheiro mais velho. Carlos" Então comecei a chamá-lo de Carlos porque ficou confortável, porque estava escrito ali. E se alguém falasse "ah, você o chama de Carlos" eu diria "ele escreveu para mim pondo Carlos". Fiquei bem íntimo de uma pessoa que tinha uma difícil intimidade.
Só há uma pessoa que se ombreia a ele nessas amizades que a literatura me trouxe: Antonio Candido. Os dois são minhas paixões maiores e por quem tenho uma admiração irrestrita. Foi um privilégio ter começado tão cedo com eles.
Ele era um homem interessantíssimo porque era sempre impecável e parecia que tinha saído do banho sempre. Eu me encontrava com ele na cidade, um calorão daquele, e ele de terno impecável e com o rosto parecia que tinha saído do banho - e com o olho azul de bola de gude. Eu jogava bola de gude quando criança e dizia: meu Deus, mas é igualzinho, compreende? Até fiz uma caricatura dele. Peguei um pouco de massa, fiz a caricatura e cravei duas bolas de gude na massa para ficar com a cara dele.
Tenho 72 anos e continuo o mesmo aprendiz com Carlos Drummond. Sempre me pergunto o que ele pensaria, o que ele acharia do que escrevo agora. E penso que ele gostaria de me ver hoje. É uma vaidade que eu tenho. Sinceramente acho que ele gostaria de ver que aquele menino que o procurou com 23 anos, de uma certa maneira, para o bem ou para o mal, vingou.
ALICE RUIZ (Curitiba, 1946)
Drummond foi super importante para mim. Ele e Quintana foram os dois primeiros poetas brasileiros que li. Foi muito intenso e transformador, e a influência, se se deu, foi no amor à poesia.
AUGUSTO MASSI (São Paulo, 1959)
Certa noite, em agosto de 1987, recebi um telefonema dizendo que Drummond havia morrido, o jornalista me pedia que escrevesse um texto sobre a obra do poeta. Fui imediatamente para o escritório e, pouco a pouco, comecei a ruminar sobre o significado daquela morte. Madrugada a adentro tentei rascunhar um artigo que nunca veio à tona. No seu lugar, nasceu um poema, Ser. Veio inteirinho, sem muco, sem que eu precisasse alterar uma vírgula. Fato raríssimo na minha experiência poética. Ele funcionou como um acerto de contas entre o sentimento de orfandade e as promessas da paternidade, entre o pai que eu havia perdido aos dois anos de idade e o meu filho, recém-nascido, que dormia no quarto lado.
Meu poema dialoga abertamente com um texto homônimo de Drummond, publicado originalmente no Jornal de Letras, em julho de 1950, e mais tarde incorporado ao livro Claro Enigma (1951). Num certo sentido, simboliza uma mescla de luta e luto diante da forte presença de Drummond no meu trabalho.
SER
O filho que não fiz
hoje seria homem.
Ele corre na brisa,
sem carne, sem nome.
Às vezes o encontro
num encontro de nuvem.
Apoia em meu ombro
seu ombro nenhum.
Interrogo, meu filho,
objeto de ar:
em que gruta ou concha
quedas abstrato?
Lá onde eu jazia,
responde-me o hálito,
não me percebeste,
contudo chamava-te
como ainda te chamo
(além, além do amor)
onde nada, tudo
aspira a criar-se
O filho que não fiz
Faz-se por si mesmo
In: Claro Enigma (1951)
SER
O pai que não tive
hoje ainda seria moço?
O que dele em mim sobrevive
guarda a forma de um esboço?
O pai que nunca vi
será que o encontro?
Severo, louco, fora de si
ou apoiado em meu ombro?
Do pai que não tive,
dizem, herdei o rosto.
O que dele em mim vive
é signo póstumo ou oposto?
O pai que desejei
num colóquio abstrato
respondeu-me: "Nada sei".
Exilou-se em seu retrato.
O pai que não matei
culpa-me pelo antiato.
Invoca a irredutível lei,
o cumprimento do pacto.
O pai que em outros persigo
é saudade a que me entrego.
Matéria de seres tão antigos
quantos filhos dentro carrego?
O pai que procuro
sopro, essência, limite
desaparece no quarto escuro.
Curva da carne, sinais, grafite.
E nesses avanços sem volta
perde-se o filho pródigo.
Nem recordações, nem revolta
a morte é nosso único código.
In: Negativo (Companhia das Letras, 1991)
MARIANA IANELLI (São Paulo, 1979)
Drummond alcança na poesia aquilo que é tão raro e que faz a sua grandeza: uma emoção não apenas estética mas fundamentalmente humana, existencial, congregadora. É uma poesia que vai além da modernidade. Mesmo num poema metalinguístico, bem inserido dentro do contexto modernista, somos falados por ele numa dimensão do humano que transcende uma reflexão sobre a linguagem. Essa é uma das razões por que sempre li Drummond. Numa situação geral de rebaixamento do valor da beleza em função do valor da novidade, sua poesia continua chamando o leitor para o poema, para um sentimento do mundo que serve como lição para os poetas, hoje, de que nenhum artifício de linguagem jamais abolirá a eternidade.
NUNO RAMOS (São Paulo, 1960)
Drummond é meu artista brasileiro predileto; só é difícil dizer como. Desde a adolescência tive muito contato com o trabalho dele e não há nada de que eu goste mais do que dos poemas dele. Do Fazendeiro do Ar e Lição de Coisas, ele tem 20 anos de poesia primeira. Ele põe em contato os opostos brasileiros. Matou a charada e achou um acesso entre as oposições nossas, como alguém que constrói um medium onde esses opostos se comunicam - o lado violento e o doce, o lado arcaico dos retratos das cidadezinhas. Mas também é um cara que canta Stalingrado, a Segunda Guerra e Charles Chaplin. Essa ambivalência é o achado dele, como alguém que consegue dar conta desse lado muito atrasado da sociedade nossa e do lado muito contemporâneo que ela. O Brasil realmente tem um pé em cada canoa, numa contemporaneidade muito forte e numa coisa arcaizante que não sai. O Drummond acessou esses fios desencapados e fez uma faísca.
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